segunda-feira, 20 de julho de 2009

POR UM GRÃO

FALARAM-ME em homens, em humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si,
Cada um separado do outro por um espaço sem homens.

Alberto Caeiro.

Objetivamos com a Temporada Experimental do Espetáculo Por Um Grão, juntamente com a realização do ciclo de discussões Teatro Contemporâneo: O Limite é Um Trampolim, o travar de uma reflexão sobre os caminhos pelos quais segue o fazer teatral nesse início de Século XXI, e as implicações éticas e estéticas que influenciam e são influenciadas por tais caminhos.
A Cia. dos Ditos Cujos, da Cooperativa Paulista de Teatro, formou-se pela união de um grupo de artistas interessados na pesquisa de um teatro de largas fronteiras etárias, ou seja, que possa ser apreciado por platéias compostas tanto por espectadores jovens quanto espectadores maduros. Assim, pretendemos o despertar de experiências estéticas e reflexões sobre as questões que permeiam o homem atual e que desconheçam idades e experiências de vidas específicas. Com a fruição de nosso primeiro trabalho, Amor que é de Mentira, ou Mentira que é de Amor?, iniciado em 2006, demos o primeiro passo desse que pretende ser um longo caminho.
Acreditamos que o teatro tem por objetivo suscitar reflexões acerca do ser humano, cabendo a seus fazedores formular por meio de linguagens cênicas diversos pontos de vista sobre o homem atual. A aspiração de um encenador a dar forma a uma intuição amorfa ou a uma percepção, quando transformada em acontecimento cênico é comunicada a pessoas de idades diferentes e conseqüentemente percebida de maneiras diversas, uma vez que cada indivíduo decodifica um sistema de signos a partir de sua própria vivência sócio-cultural.
O que legitima a reflexão acima apresentada é o processo pelo qual nasceu o Argumento que originou a dramaturgia de Por Um Grão.
A partir de uma sessão de Drama, desenvolvida com um grupo de crianças e jovens entre 09 e 13 anos de idade, alunos de um curso extracurricular de teatro, coordenado por Sidmar Gomes, e oferecido por um colégio particular de São Paulo, o dramaturgo encontrou o ponto de partida para a estruturação de Por um Grão.
O Drama, forma teatral desenvolvida inicialmente em países de língua inglesa, propõe um processo de construção de uma narrativa dramática, estimulando os participantes a conceberem teatralmente uma história. O Drama constitui-se, assim, em uma experiência que solicita a adesão e a cooperação dos diversos integrantes do grupo. Podemos compreendê-lo como uma forma de arte coletiva, em que os participantes (coordenador e grupo) assumem as funções de dramaturgos, diretores, atores, espectadores etc.
Como ponto de partida para essa sessão de Drama os alunos tomaram contato com um “baú mágico” que trazia em seu interior diversos bonecos de Playmobil, juntamente com um carro da mesma marca, e a figura de um homem sem rosto. A partir de uma série de proposições de jogos e improvisações teatrais,nasceu a narrativa de um homem que um dia acorda no meio da noite, senta na beirada de sua cama e começa a pensar em quantas pessoas havia conhecido ao longo de seus 37 anos. Chega a conclusão de que foram muitas, mas uma coisa o incomoda: é incapaz de recordar o rosto dessas pessoas, o rosto como alegoria de detalhes peculiares, como meio indispensável para o acesso daquilo que se determina como alma.
Torna-se evidente, ao longo das possíveis leituras acerca da narrativa construída, o entrecruzar-se de questões pertinentes tanto ao universo jovem quanto adulto, ambos mergulhados num panorama que traz como valor máximo o consumo e a efemeridade das coisas: tanto das relações materiais quanto das relações pessoais. Assim, a experiência do relacionar-se com seus pares encontra-se para a humanidade à semelhança de mercadorias a serem consumidas e descartadas logo em seguida.
Tal perspectiva, conforme a epígrafe de Alberto Caeiro, nos sugestiona o questionar-se sobre a real existência de humanidade na visão humanitária do termo. Para nós, essa visão não se prende primordialmente apenas à idéia de reunião de seres que apresentam características físicas comuns, mas sim de seres conscientes pertencentes a um grupo que entende que a natureza humana, até mesmo por uma questão de sobrevivência, pressupõe afeto e respeito entre seus pares.
A partir do que foi apresentado, objetivamos com esse trabalho a montagem do texto teatral Por Um Grão, escolhendo como caminho uma estética que explore a fricção entre a linguagem teatral e outras linguagens artísticas, como o cinema e a música.
Tal fricção tem por objetivo o encontro de uma encenação mergulhada no campo da poesia e do onírico, que se apresente como resistência à anestesia da percepção patrocinada pela sociedade de consumo. Percepção essa que, uma vez estimulada, convidará os espectadores, jovens e adultos, a refletirem sobre as relações efêmeras da contemporaneidade e a existência, decorrente dai, de um “projeto de humanidade” que parece nunca se efetivar.
Trata-se portanto, também, de uma batalha contra a segregação cultural, o que significa de certa forma, afirmando o teatro como espaço de debate de nossas questões, incluir efetivamente o público jovem nas discussões travadas acerca da atualidade.

SINOPSE DA PEÇA

O argumento bruto, fruto do processo de Drama relatado acima, recebeu adensamento poético e dramático a partir de sua fricção com a obra de Alberto Caeiro, heterônimo do poeta Fernando Pessoa. Tal heterônimo nos apresenta uma visão de mundo objetiva e natural, que questiona a existência da alma e considera a sensação como a única realidade: "Creio mais no meu corpo do que na minha alma...".
Dessa forma, o dramaturgo elege como forro narrativo de Por um Grão a história de um artista plástico, Marcelo, que se vale do mundo exterior como tipo de representação da realidade. Durante uma noite o personagem acorda angustiado por não recordar do rosto que acompanha as diversas silhuetas dos corpos reais por ele ilustrados. Uma existência que traz em si a vontade do conhecer-se a partir do tentar relembrar do rosto (alma) daqueles que pintou (se relacionou) ao longo de seus 37 anos. Encurralado dentro de seu quarto sufocante, o personagem refugia-se durante algumas horas da noite dentro de si mesmo. A partir de um devaneio fragmentado, o personagem nos apresenta informações que não se relacionam diretamente e que colocam o espectador ativo em dúvida se a representação é vivida (consciente) ou sonhada (inconsciente).
Na tentativa dessa reflexão sobre si e sobre a humanidade da qual dizem que Marcelo faz parte, a construção dramatúrgica vale-se da figura de um narrador - o mesmo intérprete que interpretará Marcelo - que em alguns momentos o observa e o analisa distantemente, como que submerso em um jogo de auto-análise, um observar-se de dentro e de fora demarcado claramente por algumas escolhas da encenação.
Assim, temos em Por um Grão o esquadrinhamento lírico-poético da história do personagem Marcelo, um processo de questionamento e reflexão disfarçado em uma narração monologada. Um texto que nos apresenta um personagem frente às memórias que o impelem a agir a partir da análise de sua situação. O tempo da narrativa é o presente, mas o tema da peça é a memória, a recordação/ação que não se efetiva. Dessa forma, a categoria de Por um Grão não é a da ação, mas a do estado ou situação que quando materializada pela encenação objetiva traduzir-se em um “poema cênico”.
Para Marcelo, ser artista é emprestar sua alma desconhecida às formas vazias do outro. A partir da alegoria das silhuetas de rostos esquecidos, das formas vazias do outro, pretende-se construir a metáfora máxima de tal dramaturgia: do rosto em seus detalhes peculiares como meio indispensável para o acesso daquilo que se determina como alma. Entendendo-se por esse termo algo único e íntimo, aquilo que vemos quando olhamos para dentro, quando olhamos para trás de nós - tomando de empréstimo as sensações de Alberto Caeiro, dada à liquidez das relações atuais.

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