segunda-feira, 10 de março de 2008

ATUAR DE DENTRO E ATUAR DE FORA: PODE UM PÁSSARO BICAR E OBSERVAR AO MESMO TEMPO?

A terceira possibilidade de compartilharmos Amor que é de Mentira ou Mentira que é de Amor? com nossos espectadores efetiva-se a partir da ocupação do teatro Martins Penna, em São Paulo, de Março à Abril de 2008.
Para o cumprimento dessa temporada, alguns obstáculos se apresentaram: entre os mais desafiadores encontra-se o fato de termos de nos organizar a partir de uma nova ficha técnica, ou seja, a partir de novos integrantes no grupo, em substituição à dois antigos integrantes que não puderam assumir o compromisso dessa temporada. Para tanto, abrimos nosso trabalho a outros profissionais que por ele também se interessam, e, ao mesmo tempo, acabei por assumir mais uma responsabilidade dentro desse projeto: a da interpretação de um dos personagens da peça. Dessa forma, a partir do exercício de co-habitação entre a atividade de dirigir e interpretar uma personagem de um mesmo espetáculo, senti de forma profunda a premissa de Jerzy Grotowisk de que o ator deve ser ao mesmo tempo um pássaro que bica a outro que observa, afinal, ao mesmo tempo em que estava em cena, jogando com os demais atores, tive de ampliar minha visão para o todo também, como que observando de dentro e de fora da cena ao mesmo tempo. Isso acabou por exigir dos demais atores do grupo que ampliassem consideravelmente suas visões, inerentes à prática interpretativa, de dentro e fora do evento cênico.
Tal exercício trouxe-me a consciência de que essa necessidade de estar dentro e fora simultaneamente por parte do diretor pode ter sua parcela de perigo, pois necessita de sensibilidade a atenção ainda maiores por parte daquele que responde pelo desafio de organizar o caos artístico instaurado a partir do processo em curso. Contudo, quando o coletivo cênico atinge um estágio de maturidade em que o discurso artístico pretendido e suas inerentes escolhas estéticas são claros para todos os seus participante, o fato do diretor/ator estar dentro e fora ao mesmo tempo pode ser profundamente valioso, pois muitas questões que a visão que se limita a ver de fora não é capaz de encontrar respostas acabam sendo desvendadas! Assim, o acontecimento cênico apresenta-se de forma muito mais apropriada e consciente por parte de todos os integrantes do coletivo cênico, que necessitam estender seus olhares ao exterior para que supram a carência de uma direção que não mais tem seu foco totalmente voltado à essa tarefa.
Dessa forma, a partir do decantar dos frutos de um ano de apresentações, Amor que é de Mentira ou Mentira que é de Amor? reestréia, como que reoxigenado eticamente e esteticamente pela entrada e saída de novos integrantes do fluxo da vida que o rodeia.
A sensação que nos solapa é a de que a dicotomia disseminada por muitos entre processo e o produto teatral traduz-se como a conseqüência de uma visão limitada e fragmentária do fazer artístico: o microcosmo do produto (da apresentação pública) está inserido no macrocosmo do processo teatral.
Sentimos, a partir de 15 meses de um trabalho intenso que se debruça sobre um mesmo fim, que um processo teatral quando desencadeado, não se finda após sua apresentação pública, nem ao término do período da oficina ou ao início de outro processo de imersão teatral. Continua enraizado em sensorialidades que proporcionarão, a partir dessa experiência, insights que perdurarão por toda uma existência. Recordamo-nos de nossas outras experiências, amadoras, ainda na escola, e profissionais: quantas imagens, quantas sensações, quantas fichas ainda caem depois de tanto tempo... Dessa forma, não existe um processo que culmina em um produto. Existem sim processos que se somam, se relacionam e se poluem, e que mesmo após a possibilidade de serem enriquecidos por uma apresentação pública, ainda apresentarão possibilidades e necessidades de reoxigenação, sobrevivendo e apimentando excitantes existências.


Sidmar Gomes, diretor e dramaturgo Cia. Dos Ditos Cujos.
Março de 2008.



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