segunda-feira, 10 de março de 2008

O ENCONTRO DE UM TEATRO SEM FRONTEIRAS ETÁRIAS

Amor que é de Mentira ou Mentira que é de Amor? surge como o primeiro trabalho da Cia. Dos Ditos Cujos, formada por atores e músicos, alguns na época ainda envoltos pela atividade acadêmica, outros já não mais, preocupados/ansiosos/angustiados por mergulharem no campo minado da experimentação artística.
Hoje o grupo ultrapassa os 15 meses de convivência, e o caminho empreendido por um trabalho intenso alarga-se na fronteira existente entre o não apressado, mas evidente, amadurecimento e a ânsia pelo encontro de respostas que nem sempre são evidentes. Por meio do processo de criação inicial do espetáculo, bem como de sua primeira temporada, em decorrência da aprovação do projeto no Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, graças à qual a pesquisa pôde se desencadear, e de suas segunda temporada, no Sesc Ipiranga, em Setembro de 2007, algumas questões que nos angustiavam tiveram suas respostas reafirmadas e experimentadas na prática; outras acabaram por surgir dotadas da efemeridade que amadurece; já outras, antes inexistentes, surgiram e sem respostas continuam a nos bem atormentar.
De uma forma em geral, percebemos que nossa busca por um teatro sem fronteiras etárias não se caracteriza apenas na transposição do fazer teatral para além do "espaço convencional", ou seja, apresentando-o em lugares e horários que compreendam diferentes faixas etárias. Tal busca demanda, principalmente, um cuidado e uma sensibilidade muito grande em sua produção. Um processo que entendemos como a busca por uma estética universal, que se preocupa com temas e concepções cênicas desprovidas de referências rígidas de espaço e tempo, que leva em consideração o suscitar de perguntas e reflexões pertencentes a diversas faixas etárias; e que encontra sua principal pertinência na riqueza do conflito gerado a partir do contato entre a visão cinza do adulto e a visão colorida da criança, que enxerga por cima de tons de vidas brancas, cinzas e pretas matizes de cores infinitas.
Tal trabalho aos poucos define-se a partir da integração entre diferente linguagens artísticas, como o teatro, a dança, as artes plásticas e principalmente a música; da não-formulação de um discurso didático e da não-preocupação com faixas etárias, mas da essência da arte e do ser humano, com seus sonhos e contradições.
Por meio desse percurso fica evidente que, os espectadores do espetáculo Amor que é de Mentira ou Mentira que é de Amor?, compreendidos por crianças, jovens, adultos e terceira idade, ou seja, pessoas com graus distintos de vivência social e cultural, de acordo com suas diferentes possibilidades de apreciação, chegam a viver momentos de grande prazer por meio da elaboração das significações que mais lhe falam de perto.
E mesmo que as crianças ou os adolescentes “não peguem muita coisa”, ou que nesses indivíduos as sinapses não se deflagrem por inteiro, ou seja, por mais que não compreendam tudo, é fato que o público jovem é surpreendido e interrogado por meio do mergulho em uma ficção elaborada com extremo cuidado artístico, ampliando dessa forma de modo sensível suas referências sobre si mesmos e sobre os outros. Imagens dotadas de profunda poesia, que nem sempre encontram significação, uma vez que as atuais experiências de vida de alguns espectadores são insuficientes para que sejam capazes de executar tal nível de explicitação, mas jamais impedirão a apreciação e o encantamento. Uma vez essas poesias em imagens são gravadas na memória, certamente um dia serão decodificadas. E isso se efetiva enquanto arte em sua plena potencialidade, o compreender do mundo de forma gradativa ao longo do calmo degustar de uma existência.
Nosso teatro tem como um dos objetivos principais suscitar reflexões acerca do ser humano, cabendo a nós, artífices teatrais, formular, por meio de uma constante pesquisa da linguagem cênica, diversos pontos de vista sobre o homem atual. Nossas aspirações em dar forma a uma intuição ou a uma percepção, quando transformadas em acontecimentos cênicos são comunicadas a pessoas de idades diferentes e conseqüentemente percebidas de maneiras diversas, uma vez que cada indivíduo decodifica um sistema de signos por meio do conflito entre a realidade objetiva da obra de arte e sua própria vivência sócio-cultural. Quanto mais sentidos uma obra de arte possibilita, ou seja, quanto mais leituras ela permite, mais plena ela é. Classificar por faixas etárias é limitar, e a arte desconhece limites de significação.
Contudo, essa característica só é alcançada porque não nos preocupamos, ao longo de nosso processo de criação, com idades específicas, mas sim com o diálogo entre seres humanos dotados de sensibilidade, levando em consideração que anos de vida e grau de sensibilidade não são fatores diretamente proporcionais. Forte apelo musical e visual, dando grande peso a imagens ao invés da verborragia, pesquisa estética que poetiza sobre questões que permeiam diferentes vivências culturais, sociais e temporais, o entendimento e valorização da essência sensível do ser humano, edificados sobre o solo do extremo cuidado em sua produção, são alguns dos recursos identificados para que esse teatro sem fronteiras etárias seja alcançado. Não apenas para que um teatro sem fronteiras etárias seja alcançado, mas, principalmente, para que o público jovem, por meio de uma produção teatral de qualidade, e por isso possibilitada de se ver livre da marginalidade, participe efetivamente do movimento teatral e, entendendo o teatro como uma constante reflexão sobre as questões que permeiam a humanidade, participe dos debates sobre as circunstâncias da atualidade.
Algo que se tornou evidente aos nossos olhos a partir desse trabalho foi o fato de que: a infância é da ordem do “faz-de-conta”; o teatro, por sua vez, também é da ordem do “faz-de-conta”; portanto, o teatro é da ordem da infância, e o adulto, por questões que transcendem o entendimento racional, é incapaz de recusar um convite sincero e sensível à possibilidade de resgatar dentro de si a criança adormecida que há tempos esqueceu o prazer inerente ao brincar de “faz-de-conta”.
Antes de terminarmos, faz-se necessário esclarecermos e ressaltarmos alguns pontos anteriormente já tratados. Aos ouvidos de muitos, também preocupados com as questões que permeiam a criança, a existência de um teatro destituído de fronteiras etárias pode soar como uma idéia que endossa o declínio e o conseqüente “desaparecimento da infância”.
Contudo, a busca por um teatro sem fronteiras etárias não pretende transformar a criança em um adulto em miniatura, nem o adulto em um ser de idade avançada infantilizado. Reconhecemos a existência de um universo que permeia a idade adulta e de outro universo que permeia a idade infantil, dicotomia essa evidenciada principalmente por fatores biológicos, que determinam o avanço do ser humano de um nível de desempenho físico e intelectual para o seguinte. Esse fato tem como conseqüência a existência de formas distintas, mas nem por isso de importâncias e valores díspares, de se enxergar e se relacionar com o Universo maior que compreende tais universos particulares, à priori tão diferentes.
Reconhecemos também a possibilidade da existência de um teatro só para crianças e outro só para adultos, mas questionamos a real eficiência de uma modalidade artística assim bipartida, uma vez que quando um artista profere seu discurso, um discurso edificado sobre o campo do sensível, inerente a qualquer ser humano, ele o comunica a pessoas de idades diferentes que o interpretam de formas diferentes, ou seja, o artista não tem o controle sobre o processo dialógico estabelecido a partir de sua criação. Dessa forma, classificar uma obra de arte de acordo com faixas etárias específicas se traduz em uma postura que beira a arrogância, tendo como conseqüência possíveis distorções profundamente comprometedoras, como por exemplo, uma visão “infantilizada” da infância.
Idade adulta e infância compreendem universos distintos, mas que se cruzam constantemente. Tal entrecruzar se dá principalmente por perguntas que a criança já faz e que estão profundamente relacionadas ao universo que a idade adulta compartilha. É exatamente nesse entrecruzar de existências que mergulhamos, procurando uma estética que suscite respostas repletas de encanto, curiosidade e exuberância característicos do olhar infantil, para as perguntas que existem, mas jamais para as perguntas nunca feitas.


Sidmar Gomes, diretor e dramaturgo Cia. Dos Ditos Cujos
25 de Fevereiro de 2008



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